sexta-feira, 23 de maio de 2014

Texto: a intolerância religiosa que infiltrou o Poder Judiciário


Até na Justiça, candomblé é alvo de intolerância

Para Justiça Federal do Rio, candomblé e umbanda deveriam ter um texto sagrado como fundamento e venerar a uma só divindade suprema.
Por Jean Wyllys
Publicado no site CartaCapital em 16/05/2014

A intolerância religiosa e os preconceitos em relações ao candomblé e à umbanda sempre infiltraram os poderes da República e as instituições do Estado que se pretende laico. E talvez pelo fato de essa infiltração ter sido sempre negligenciada, apesar dos seus efeitos nocivos, ela tenha feito desabar um cômodo do Judiciário: a Justiça Federal do Rio de Janeiro definiu que umbanda e candomblé "não são religiões". Tal definição - que mais se parece com uma confissão pública de ignorância - se deu em resposta a uma decisão em primeira instância do  Ministério Público Federal que solicitou a retirada, do Youtube, de vídeos de cultos evangélicos neopentecostais que promovem a discriminação e intolerância contra as religiões de matriz africana e seus adeptos, já que o Código Penal, em seu artigo 208, estabelece como conduta criminosa, “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.


Em vez de reconhecer a existência da ofensa - e não há dúvida para qualquer pessoa com um mínimo de discernimento e senso de justiça de que a ofensa existe - a Justiça Federal do Rio de Janeiro desqualificou os ofendidos; considerou que não "há crime se não há religião ofendida". Para tanto, a Justiça Federal do Rio conceituou umbanda e candomblé como cultos a partir de dois motivos absolutamente esdrúxulos (ou seria melhor dizer a partir de dois preconceitos?): 1) candomblé e umbanda deveriam ter um texto sagrado como fundamento (aqui a Justiça Federal ignora completamente que religiões de matriz africana são fundadas nos princípios da transmissão oral do conhecimento, do tempo circular, e do culto aos ancestrais); e 2) candomblé e umbanda deveriam venerar a uma só divindade suprema e ter uma estrutura hierárquica (aqui a Justiça Federal do Rio atualiza a percepção dos colonizadores do século XVI de que os indígenas e povos africanos não tinham fé, não tinham lei nem tinham rei). Pergunto: Há, na decisão da Justiça Federal, pobreza de repertório cultural, equívoco na interpretação da lei ou cinismo descarado?




Alerta: na terça-feira (20), a assessoria de imprensa da Justiça Federal do Rio de Janeiro divulgou que o juiz responsável pelo regimento da sentença voltou atrás e admitiu o erro, reafirmando candomblé e umbanda como religiões.

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