quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Entre Muros e Favelas




Documentário, Brasil, 2005, 56 minutos.


Direção: Suzanne Dzeik, Kirstem Wagenschein e Marcio Jerônimo.




O filme Entre Muros e Favelas, produzido pela TV comunitária Tagarela, é um documentário que traz como tema central a questão da violência. No entanto, diferente do que geralmente vemos nas mídias tradicionais - como em novelas e em jornais -, em vez de retratar áreas de maior prestígio social, mostrando - em uma enorme quantidade de vezes (e não sempre) - a visão do morador de “zona sul” a respeito da falta de segurança, o filme mostra o lado de quem lida com a violência todos os dias. É claro que isso ocorre pela própria lógica de venda em que estão inseridos os meios de comunicação de massa tradicionais, a partir da qual os jornais procuram direcionar as opiniões para o seu público alvo, agradando ao máximo o senso comum, que no caso das mídias tradicionais é o da classe média.
Sendo, de certo modo, o oposto do filme Tropa de Elite (que vem sendo repetidamente discutido na mídia e que aborda a questão da violência nas favelas a partir do ponto de vista de um policial), o documentário traz a versão de pessoas inocentes que ficam sem seus filhos, maridos, namorados. Em seu interior encontram-se várias cenas chocantes, como: a mãe que não pode lutar para fazer justiça e foi expulsa da favela, a menina que estava grávida com apenas 14 anos e ficou “viúva”, as criancinhas que dizem já terem presenciado mortes de perto, entre outras histórias. É claro que este filme não é o único que representa esse ponto de vista. Na verdade, é crescente o número de filmes produzidos a partir do olhar dos próprios protagonistas, sendo estes muitas vezes membros de comunidades.
No entanto, o fato mais interessante (e que ajuda a compreender porque este retrata a versão de quem vive nas favelas) é que, diferente do “Uma Onda no Ar”, de Helvécio Ratton, não se trata de um filme que fala sobre uma rádio comunitária, mas é um produto da própria mídia comunitária, no caso da TV Tagarela. No entanto, para nos aprofundarmos nessa questão, torna-se pertinente esclarecer alguns pontos que estão ligados à idéia de Mídia Comunitária (MC).
Primeiramente, podemos definir os Meios de Comunicação Comunitária como meios voltados para uma comunidade específica, geralmente com um forte caráter engajado, e que buscam criar lugar de voz em prol da comunidade geralmente excluída dos meios de comunicação tradicionais. Mas qual seria a necessidade da criação desses meios? Na tentativa de responder essa pergunta a pesquisadora Raquel Paiva sugere alguns aspectos determinantes: Em primeiro lugar, deve-se destacar que os membros de comunidades carentes não se vêem representados nos grandes meios, como em novelas, por exemplo. Logo, desejam criar um discurso próprio, sem nenhum intermediário, sem precisar da permissão de outras pessoas e que os represente de maneira mais verossímil. Além disso, também há a necessidade de falar dos problemas específicos da comunidade, pouco atendidos em pequenos quadros como “Globo Cidade” e outros do gênero.
Esse argumento se reforça se lembrarmos do que a estudiosa Cicilia Peruzzo afirma: “Os Movimentos Sociais estão expressando interesses coletivos que trazem em seu interior um esforço por autonomia”, para isso criam seus próprios meios de comunicação. Nesse sentido, estes MCC acabam funcionando como lugar de expressão em nível local e com conteúdos específicos, que os grandes meios massivos não conseguem satisfazer. No entanto, não devemos confundir os MCC como meios idênticos aos Meios de comunicação locais, porque por mais que estes tenham como ponto convergente a preocupação com problemas territoriais (como por exemplo, a falta de água encanada em algumas comunidades), estes se diferenciam em diversos pontos, entre outras coisas pelo fato dos MCC envolverem questões mais amplas e não se aterem à prestação de serviços para a comunidade.
Segundo Peruzzo, as TVs comunitárias muitas vezes são associadas a alguma entidade, como uma ONG, uma Igreja, uma universidade, enfim, grupos que se preocupam, em certo sentido, com a cidadania dos menos favorecidos. Isso porque, geralmente, são essas instituições que fornecem as bases para a produção, através de uma equipe (na maioria dos casos são membros da comunidade) que possui conhecimentos técnicos de elaboração de roteiros, gravação e edição, além de outras ajudas. No caso da TV Tagarela isso não é diferente. Ela nasceu a partir de uma oficina de criação de vídeo oferecida aos jovens entre 14 e 18 anos da comunidade Rocinha pela Ação Social Padre Anchieta (ASPA), em 1997. A ASPA é uma instituição católica que atua na Rocinha desde 1963, promovendo cursos e projetos educacionais, culturais e sociais que buscam possibilitar a inclusão dos moradores na sociedade.
Foi o desejo de construir algo próprio, pelos motivos já citados, que os jovens ao término da oficina resolveram utilizar o conhecimento adquirido na criação de uma TV comunitária, e em 1998, criaram a TV Tagarela. Inicialmente chamada de ASPA Vídeo, a TV era formada por um grupo de dez pessoas que começou a desenvolver projetos voltados para a cultura, educação e cidadania com os equipamentos financiados pela ASPA. Após as produções, esses vídeos eram transmitidos através de telões dentro da comunidade, caracterizando a TV Tagarela como TV móvel, de Rua. A escolha desse tipo de MCC foi um ponto bastante positivo para o desenvolvimento da TV Tagarela, pois segundo Peruzzo, esse tipo de TV não precisa de concessão ou permissão de canal, o que torna mais fácil sua continuidade.
As manifestações através da “TV de Rua” foram um dos primeiros passos para a criação de TVs comunitárias no Brasil. Segundo a definição dada por Peruzzo, elas têm propósitos educativos e culturais e surgem em um contexto de efervescência dos movimentos sociais. Essa iniciativa se caracteriza pelas produções de vídeos com a participação da própria população e são caracterizadas pela sua transmissão, que ocorrem em espaços públicos, objetivando uma recepção coletiva de seu material. Assim, seu modo de exibição é itinerante, ou seja, não possui um lugar fixo. Geralmente, a equipe resolve parar em algum espaço público, cuja circulação de pessoas seja grande e essa população é convidada a debater e assistir as exibições. No caso da TV Tagarela, já existem alguns vídeos disponibilizados no site, alguns deles são: Comunidade Viva, que mostra a associação de moradores de Vila José, que trouxe para a comunidade tele-salas, supletivo e ambulatório; Arte do Lixo e Lixo da Arte, que fala de artistas plásticos que utilizam o "lixo" para fazerem suas artes, entre outros. Esses vídeos costumam ser exibidos em áreas movimentadas da Rocinha, como a Praça Roupa Suja, por exemplo.
Apesar de iniciativas como estas estarem crescendo, os MCC ainda sofrem muitas limitações. Peruzzo tenta sintetizá-las em alguns pontos: abrangência reduzida, pois apesar de ser algo produzido da comunidade para o benefício da comunidade, eles demonstram certas expectativas quanto a alcançarem outros telespectadores. Afinal, se as questões colocadas ali não se expandirem para fora da favela, será que algo irá mudar? Se os meios de massa tradicionais chegam até as casas da comunidade, por que não a voz desses que geralmente são excluídos alcançarem o “asfalto”? ; inadequação dos meios, nem sempre os idealizadores pensam em seu público alvo antes de decidir para qual mídia vão recorrer para fazer sua comunicação comunitária, e o erro na escolha desta pode prejudicar consideravelmente o número de público, influenciado diretamente no sucesso da iniciativa comunitária- é claro, que se coloca também a questão da falta de recursos, é uma escolha dentro das possibilidades -; o caráter excessivamente engajado às vezes atrapalha o “sucesso” dos MCC, porque geralmente remetem a uma postura mais séria, e a direcionam todos os assuntos para os objetivos mobilizadores, tornado a programação até cansativa, em certo sentido. Entretanto a carência de recursos financeiros é um dos pontos mais críticos, podendo pôr em risco sua geração, bem como pode inviabilizar sua continuidade, afinal não se consegue produzir nada sem capital e o trabalho com meios de comunicação custa caro; entre outros.
A própria TV Tagarela já sofreu e ainda sofre com alguns desses problemas, principalmente de carência de recursos. Isso porque a TV Tagarela foi se tornando cada vez mais independente da ASPA, o que acabou possibilitando a troca do nome de ASPA Vídeo para TV Tagarela, após a descoberta de um jornal comunitário com mesmo nome da década de 80, em um bazar oferecido na própria Rocinha. Já em 2003, a TV Tagarela desvinculou-se de vez da ASPA. A separação trouxe algumas dificuldades, uma vez que não tinham recursos para as produções. Como a TV não contava com um espaço físico, todo o material era guardado separadamente na casa dos membros da TV. Mesmo com esse problema, a TV continuou a produzir, através da ajuda de outros grupos que emprestavam seus equipamentos para a realização do trabalho. O próprio filme em questão foi produzido com a ajuda da TV ATREVER, de Manguinhos, e da TV AKRAAK. Em 2004, outro problema foi contornado, através de uma parceria com a Associação CACOC (Cultura Arte e Comunicação Comunitária), que cedeu uma sala para funcionamento das atividades da Tv. Já em 2005, a equipe da TV Tagarela recuperou praticamente todo o seu equipamento de produção através de produções comerciais para a realização mínima do seu trabalho.
Em Entre Muros e Favelas, houve mudanças na idéia inicial do projeto da TV alemã AKRAAK. Ela pretendia documentar o Movimento dos Sem-Terra. Porém, mais tarde resolveu voltar suas lentes para a ação de um grupo mais urbano. O contato com o grupo Atrever definiu o cenário: as favelas. E as dificuldades que encontraram para fazer as filmagens numa comunidade mudaram o foco mais uma vez, concentrando-se na violência policial. Mais uma prova do quanto o tema retratado no documentário é real, e persiste no cotidiano das comunidades.
No entanto, apesar das dificuldades, são os benefícios que a mantém funcionando. Ainda com base nas idéias de Peruzzo, entre os pontos positivos em se manter um MCC podemos citar: Apropriação de meios e técnicas, aproximando a população dos meios e desmistificando o processo de comunicação; conquista de espaço, tornando a comunicação um pouco mais democrática e plural; conteúdo crítico, estimulando mudanças que acarretariam na melhoria das condições vida para as comunidades; Construção e reafirmação de identidades, que a através dos MCC friza a idéia de comunidade, reforçando laços e aumentando a participação da população; entre outros.
A TV Tagarela é um exemplo de uma iniciativa que luta para conservar esses benefícios. Hoje, mesmo sem qualquer financiamento, ela realiza várias atividades como: exibição de rua através de telão em alguns pontos da favela, vídeos que contextualizam a Rocinha e/ou ligados a questões referentes a ela; Cine clube em sala fechada na sede da CACOC, com filmes nacionais de preferência que tenha alguma relação com a realidade da comunidade da Rocinha para promover uma discussão após filme (como por exemplo, já foram exibidos “Madame Satã” e “O quarto Poder”), e na rua, mais voltada ao público infantil, pois muitos moradores não tem condições de ir ao cinema (como por exemplo, foi exibido o filme “Madagascar”); Oficinas de vídeos, realizados por ex-alunos da TV Tagarela para jovens da comunidade, ensinando todos os passos básicos para a realização de um vídeo.
Peruzzo esclarece que a produção videográfica dos grupos ou entidades que trabalham com o vídeo popular e o transformam num tipo de televisão comunitária não se limita a materiais para exibição em espaços públicos. Também produzem documentários e outros tipos de programas audiovisuais para uso nos movimentos sociais. O que explica a produção do filme que ganhou o prêmio Jangada, de “melhor documentário média metragem etnográfico” em 2005: Entre Muros e Favelas.
Um outro ponto bastante interessante é a relação de iniciativas como a TV Tagarela com a internet. Durante toda a pesquisa, encontram-se várias páginas relacionadas, seja do próprio MCC, seja derivados como Blogs e Comunidades dentro do site Orkut, por exemplo. Acredito que esta ferramenta é bastante benéfica para a divulgação dos MCC, bem como para pessoas que não fazem parte da comunidade ter um primeiro contato com essas formas de comunicação comunitárias. Não podemos dizer que há comunicação comunitária na internet, mas sim que estes espaços pluralizam conteúdos vinculados aos MCC. Discordo um pouco da opinião de Paiva, que enfatiza o caráter democratizador da internet, baseando seu argumento na possibilidade de maior participação por parte da população. Para Paiva os MCC são meios de comunicação horizontal, ou seja, todos têm direitos iguais de voz, não havendo hierarquia. É claro que existe um espaço maior dedicado à participação popular do que nos meios tradicionais, no entanto, acredito que essa idéia de que nos MCC e na internet não há hierarquização é bastante utópica. Conforme afirma Peruzzo, um dos problemas no MCC é justamente a participação desigual, estando o “poder” ainda concentrados em poucas mãos.
Por fim, gostaria de chamar atenção da trilha sonora do filme Entre Muros e Favelas, que é um exemplo de como a música pode ser um ótimo veículo de expressão social. O Hip Hop e o Funk mostram exatamente os ritmos “naturais” da favela, bem como as questões que fazem parte do cotidiano desses moradores. Infelizmente, nem o site da TV tagarela, nem outros que fazem menção a ela, se aprofundam nessa questão da música engajada.Diante de todos esses aspectos, acredito que não devemos ser tão pessimistas ou preconceituosos em relação aos meios de comunicação comunitários, nem tão idealistas ao ponto de achar que eles mudarão o mundo. Quando se trata de uma iniciativa séria como é o caso da TV Tagarela, vemos que - através de colaborações -eles produzem um material de qualidade, bastante benéfico para a sociedade, em principal para os membros das comunidades.

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