sexta-feira, 30 de maio de 2014

Texto: A subjetividade da lei 6.717/14 perante uma manifestação cultural periférica


Em março de 2014, foi sancionada uma lei que proíbe “o ingresso ou permanência de pessoas utilizando capacete ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face nos estabelecimentos comerciais, públicos ou abertos ao público” no estado do Rio de Janeiro. Ao tentar amenizar as palavras, a proposta de lei abre um vão de subjetividade que permite interpretação de variadas vertentes. Entre elas, aquela que abrange uma possibilidade de preconceito contra uma expressão cultural de afirmação para uma classe historicamente marginalizada.

O texto a seguir é do escritor MV Bill, no qual ele disserta sobre onde (e como) entram o "boné" na proposta, traçando um elo com a manifestação cultural da qual ele faz parte:

Apologia do boné
Lei que veta uso do acessório no Rio violenta um símbolo de identidade da periferia
Por MV Bill

Publicado no site Estadão em 24/05/2014

Vivemos numa época assustadoramente violenta. Sair para o trabalho ou mesmo para comprar pão podem se tornar verdadeiras aventuras. Para ser franco, meus pais diziam o mesmo do tempo deles. Mas é fato que passam os anos e as formas de violência no Brasil tomam novos contornos. As pessoas têm medo de sair de casa e até de ficar em casa. Nesse caos diário, é preciso que a sociedade dê respostas em diversas áreas, como segurança e ética, entre outras - já que não é possível conviver com tantas anomalias sem reagir. No entanto, medidas totalitárias não são bem-vindas. Medidas que reforcem o preconceito e a discriminação não são bem-vindas. E medidas que só atingem grupos historicamente marginalizados também não são bem-vindas.

Uma delas, a meu ver, é a bem-intencionada lei estadual que entrou em vigor no sábado, dia 17, no Rio. Em termos gerais, a lei 6.717/14, de autoria da deputada estadual Lucinha (PSDB-RJ), proíbe “o ingresso ou permanência de pessoas utilizando capacete ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face nos estabelecimentos comerciais, públicos ou abertos ao público”. A justificativa da autora do projeto é “impedir que criminosos tentem driblar as câmeras de segurança durante abordagens e assaltos”, como afirmou em uma entrevista.

Não tenho nada contra a deputada, inclusive acho coerente que as pessoas sejam proibidas de andar com rostos cobertos fora do carnaval e das manifestações populares. Em minha opinião isso deve mesmo ser proibido, pois significa um risco à segurança. No que se refere especificamente aos bonés, diz a redação da lei: “Os bonés, capuzes e gorros não se enquadram na proibição, salvo se estiverem sendo utilizados de forma a ocultar a face da pessoa”.

É aí que vejo o problema. A expressão “salvo se estiverem sendo utilizados” dá margem a uma subjetividade na interpretação da lei que não me agrada em nada. Nem a mim nem a nenhum dos milhões de brasileiros historicamente marginalizados que sabem, desde pequenos, que a tal da subjetividade nunca será favorável a nós. É a subjetividade que nos impede de ser bem atendidos em uma loja de grife. A subjetividade no Brasil é construída no contexto de uma sociedade que nivela pobres a marginais que estão sempre na iminência de cometer algum delito - aguardando apenas uma oportunidade e uma forma de se esconder.


Leia o texto na íntegra no site: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,apologia-do-bone,1170847,0.htm

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