segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

As contradições da grande imprensa sobre UPPs e controle das favelas no Rio de Janeiro

Em breve, faremos uma série de posts visando complexificar as reflexões sobre a questão da violência no Rio de Janeiro.

Por agora, uma breve análise das contradições, silêncios, omissões e desvios de leitura de matérias do jornal O Globo de domingo, dia 12/12/2010, sobre o tema.

Na pág. 16, o jornal traz matéria sobre pesquisa realizada, a partir de encomenda do próprio jornal, pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS) com 400 moradores de favelas com UPP e 400 moradores de favelas sem UPP. Com base nos dados de tal pesquisa, que ilustram a página em 10 gráficos coloridos, o Globo se dá o direito de publicar a matéria sob o esfuziante título "Um claro objeto de desejo", se referindo à UPP.

Vamos aos dados: das dez perguntas, nove se referem a questões como violência local, ocupação militar, UPP, confiabilidade da polícia etc. Os dados são claros, segundo o Globo, a maioria, num caso ou outro, só com percentuais diferenciados (as favelas com UPP são mais entusiastas) apoia a intervenção, a UPP, confia na polícia etc.. Só pra exemplificar: perguntados se as UPPS são boas ou más, 92% (favelas com UPP) consideram boa/ótima; e 77% consideram boa/ótima (fav. sem UPP). E os dados seguem por aí.

No entanto, em um dos gráficos, o 9, a pergunta é: "Onde mora, se sente livre para dar sua opinião sobre qualquer assunto de interesse da comunidade?". Vamos às respostas: a) fav. com UPP - 46 % totalmente livre; 11 % não tem liberdade; 38 % livre c/ restrições; b) fav. sem UPP - 36 % totalmente livre; 29 % sem liberdade; 24 % livre com restrições".

Ora, esses dados são significativos: apontam para o fato de que, em ambos os casos, mais de 50 % dos moradores não se sentem totalmente livres para dizer o que pensam de verdade. Ora, ora, isso não deveria colocar em suspenso os dados dos outros gráficos? Isso não parece significar, caso estes dados deste nono gráfico se confirmem, que os demais podem refletir não uma opinião de fato sobre o que está sendo perguntado, mas uma opinião censurada ou sob restrição?

O Globo não se pergunta isso. Ao contrário, seu único comentário sobre este gráfico é reproduzir uma opinião do José Mariano Beltrame, secretário de segurança do RJ, que entende que a diferença no quesito liberdade de opinião tem a ver com o tempo, pois os moradores precisam dele para se acostumarem. Nas palavras de Beltrame reproduzidas pelo Globo: "com o tempo esse sentimento quanto à liberdade de opinião tende a crescer". Bom, vamos ver se entendemos: enquanto o tempo não passa, os moradores continuam se sentindo não livres para opinar? Então, enquanto o tempo não passa, qual o valor dos dados nas demais respostas, dadas sob um ausente "sentimento quanto à liberdade de opinião"? O Globo, obviamente, não se pergunta isso, embora o selo que abre todas as suas matérias, nesse edição sobre a temática, seja "Favela Livre". Será uma ironia?

Para corroborar ainda mais sua campanha pró UPP e intervenção militar nas favelas, duas páginas depois, na 18, o Globo traz matéria sob o título "Rompendo o silêncio dos inocentes. Os relatos dramáticos de quem ainda vive sob o poder de traficantes e milicianos nas favelas do Rio". Com depoimentos de moradores com nomes falsos, o que deveríamos assistir, de acordo com os dados da pesquisa citada acima e divulgada duas páginas antes, seria um total apoio à ação da polícia militar e da intervenção como solução, correto?

Não é bem isso que ocorre. Vejamos alguns depoimentos:

"A polícia vem aqui, mas come um bom dinheiro. Uma vez viram um sargento rolando no chão atrás de pó para cheirar. Ainda assim, acho que vale a pena que isso seja ocupado. Tem gente rezando todos os dias para essa pouca vergonha acabar" (Ana Maria) - preciso apontar para a necessidade de refletir sobre as contradições contidas nesse depoimento? O Globo ignora.


"Todos eles foram violentos porque entraram na minha casa e não tinham esse direito [se referindo ao fato de sua casa ter sido invadida três vezes, duas por traficantes rivais e uma por policiais]. (...) Eu lembro que os que invadiram primeiro ficavam cantando enquanto matavam as pessoas na minha porta. É uma atitude comum. Até os policiais, quando passam com o caveirão, gritam: "sai da rua, vagabundo; sai da rua, piranha". E riem. Então, para mim, ninguém é bonzinho. São iguais" (Joana) - Sobre esse eloquente e chocante depoimento, que invalida toda a argumentação do jornal a favor da intervenção policial como solução de ordem, NENHUMA CONSIDERAÇÃO.

Nem preciso dizer que na primeira oportunidade o jornal, que não reflete sobre NADA, dá um jeitinho de criminalizar o baile funk, como no trecho: "A menina cresceu e absorveu os símbolos daquele mundo paralelo. Bailes funks, jovens traficantes armados sendo cobiçados pelas garotas mais bonitas do morro e viciados consumindo coca e heroína na sua frente".

Precisamos, com urgência e seriedade, discutir o papel e a responsabilidade da grande imprensa brasileira na cobertura sobre a violência no Brasil. O que listei acima é sério, estamos assistindo à construção da realidade social sem atentar para suas contradições e complexificações. Isso é, antes mesmo de ser exemplo de mau jornalismo, um enorme perigo.

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