Trabalho Final Bruno Roger e Rodrigo Morelato

Introdução:  


Neste pequeno trabalho, nos propomos à análise de um produto da indústria cultural – a saber, o videoclipe da música “The Fear” (2009), de autoria da cantora e compositora britânica Lily Allen.

Fazemos, desde já, ressalvas quando aos empecilhos por nós encontrados ao longo da análise – como os possíveis problemas de tradução e interpretação da letra; a falta de um conhecimento mais vasto acerca da linguagem e da história do videoclipe; a questão da projeção subjetiva (tomada aqui num sentido reflexivo, ou seja, que, na decodificação de bens culturais, recorremos a um repertório adquirido via nossa experiência de vida).
Esses empecilhos nada mais são, na verdade, do que o resultado da ausência do horizonte de referências segundo o qual tal bem cultural foi produzido. Acreditamos, como afirma Pierre Bourdieu acerca da imigração de idéias, que “(...) as situações de ‘imigração’ impõem com uma força especial que se torne visível o horizonte de referência o qual (...) pode permanecer em estado implícito”. (Sobre o Poder Simbólico, p. 7)


Uma pequena biografia:

 
Lily Rose Beatrice Allen, pertencente a um núcleo familiar composto por pessoas do universo da indústria do entretenimento - filha do comediante e apresentador Keith Allen e da produtora de cinema Allison Owen. Seu interesse pela música despertou quando, ainda criança, apresentou-se no teatro de sua escola e conseguiu emocionar toda a platéia. Lily Allen, que sempre foi uma garota fora do rígido padrão disciplinar inglês, foi encorajada a desenvolver o seu talento pela sua professora de música, a compositora Rachel Santesso. Ao final do colegial, Lily já dominava o piano – embora se expresse melhor cantando.

Lily Allen ascendeu em sua carreira na cultura pop de forma incrivelmente rápida. Adepta das novas tecnologias on-line, exibiu suas músicas no seu perfil do MySpace, o que teve como conseqüência a gravação de seu primeiro álbum Alright, Still (2006) pelo selo EMI. Os maiores hits da cantora nesse ano foram as músicas “Smile” – na qual ela narra, de forma sádica, uma vingança que teve de um ex-amante - e LDN – onde, por contraste entre a alegria da melodia e a letra sarcástica, ela descreve um suposto passeio por Londres. Hoje, com 24 anos, mistura em suas músicas elementos de rap, musica eletrônica e influenciada pela musica dos anos 60.

Consta em sua carreira mais um recente álbum: It’s Not Me, It’s You (2009). Nele, musicas como “I Could Say” e “The Fear” – esta, intitulada primeiramente como “I Don’t Know” – conferem um ritmo mais dinâmico e reflexivo à sua obra.

Um fator que confere visibilidade à cantora – além das novas mídias (como o MySpace e o Twitter, por exemplo) e dos prêmios que ganhou por seus trabalhos – consiste no programa de variedades (“Lily Allen and Friends”) que apresenta na televisão Britânica.
Outro traço geralmente vinculado a Lily Allen é o seu envolvimento constante em diversos tipos de polêmicas com outras celebridades – como Kate Parry e Elton John –, bem como quanto à sua forma física e abuso de drogas lícitas.
 

Um bem da cultura de massas:

 
Talvez a função predominante de um videoclipe – ou, ao menos, a mais evidente – seja aquela ligada a seu caráter mercadológico, aquele relacionado à promoção das vendas de um determinado produto musical.

Se por um lado a história do videoclipe pode remeter à década de 1960 – quando ele não possuía uma finalidade outra que tornar possível, ao mesmo tempo, vários “shows” simultâneos de uma mesma banda em diferentes emissoras de televisão –, por outro, há de se ter em mente que o modelo de videoclipe hoje hegemônico é fruto de uma institucionalização comandada pela MTV americana a partir da década de 1980.

Essa estética adotada pela MTV caracteriza-se por um ritmo acelerado e caótico na montagem, o que resulta em uma narrativa que não preza pela continuidade espaço-temporal, e que possua uma forte multiplicidade visual.

Acreditamos que haja no videoclipe por nós analisado uma crítica a certos aspectos – se não negativos, ao menos indesejáveis – do mundo contemporâneo, como a cultura de consumo exacerbado – onde se configura uma lógica do perecível – e a transformação do artista em celebridade que imperam nos dias atuais. Versos como (em tradução livre) “Eu sou uma arma de consumo em massa/ mas isso não é minha culpa, é como fui programada para funcionar” podem ser tomadas como exemplo desses caracteres negativos da cultura contemporânea. Lily Allen joga com o imaginário coletivo (associando o consumo a um cenário pessimista, destrutivo) ao utilizar o termo “arma de consumo em massa” – referência clara às armas de destruição em massa, que no século XX (principalmente na época da Guerra Fria), alimentavam o medo da destruição do mundo por uma guerra total. Por outro lado, a cantora enfatiza a sua indiferença aos problemas desse novo mundo ao afirmar que isso não seria sua culpa, pois ela fora “programada” para funcionar assim.

Talvez possamos associar a figura do artista moderno àquela metáfora de “herói” criada por Bauman no seu livro Vida Líquida. Diferentemente da categoria de “mártir” – aquele indivíduo vitimado pela impossibilidade de coexistência de suas crenças e a estrutura rígida da sociedade pré-moderna –, o herói seria aquele ser que luta contra todas as adversidades em prol da concretização de seus ideais. A associação da figura do artista moderno à do herói, sobretudo no caso de artistas de vanguarda (que crêem no papel modificador da arte) é praticamente inevitável. Para Bauman, a contemporaneidade assistiu ao desmanche dos seus heróis e a ascensão das celebridades, movimento concomitante ao desmantelamento do Estado de bem-estar social, do obscurecimento do espaço público pelo privado e das demais liquefações que sofreu a modernidade tardia.

Uma rápida investigação quanto à essa aparente incoerência na capacidade da indústria cultural de produzir, distribuir e comercializar até mesmo a sua própria crítica vai encontrar na exposição dos pensamentos da Escola de Frankfurt realizado por de Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados, uma explicação se não completa, ao menos plausível.
Segundo Eco, essa corrente de pensamento acredita que os bens da indústria cultural são

“Feitos para o entretenimento e o lazer, são estudados para empenharem unicamente o nível superficial de nossa atenção. De saída, viciam a nossa atitude, e por isso, mesmo uma sinfonia, ouvida através de um disco ou rádio, será fruída do modo mais epidérmico, como indicação de um motivo assobiável, e não como um organismo estético a ser penetrado em profundidade, mediante uma atenção exclusiva e fiel” (p.41)

 
Transformar aquilo que poderia ser uma canção de protesto em uma música que segue a lógica da mercadoria – como deixa evidente o uso abusivo dos refrões, cujo objetivo é tornar a melodia o mais memoriável e facilmente assimilável possível – a indústria cultural a incorpora enquanto bem vendável e a esvazia de todo o seu poder subversivo.
 

A perda de referências:


Uma grua que acompanha a sinuosidade dos galhos de uma árvore revela um trailer imerso em um ambiente bucólico – vemos também cadeiras, um pequeno varal onde foram postos a secar peças de roupas íntimas e um ursinho de pelúcia – no qual cores dessaturadas se fazem predominantes.
Esse ambiente ingênuo, bem como a postura infantilizada da cantora, contrastam fortemente com a imagem que a imprensa usualmente veicula de Lily Allen – conhecida pelos escândalos sucessivos (como, por exemplo, o seu abuso de álcool durante suas apresentações e brigas com outras celebridades como Elton John, Kate Parry e Paris Hilton).
 
Além dessa forte ironia presente em todo o videoclipe, outro traço marcante pode ser reconhecido nos acontecimentos onírico que o refrão detona – como a transformação daquele pequeno trailer em um castelo onde os empregados não trabalham, mas dançam; as compras, embrulhos em grandes embalagens coloridas, ganham pernas; e, finalmente, quando todos esses elementos oníricos se encontram, do lado de fora do castelo.
No refrão se lê (em tradução livre) “Eu já não sei o que é certo e o que é real/ eu não sei mais como eu devo me sentir/ Quando você acha que tudo isso vai passar?/ Porque eu estou sendo tomada pelo medo”. A relação entre o conteúdo musical (principalmente aquele contido na letra) e o imagético atinge, nesses pontos, o mais alto nível simbólico de todo o videoclipe.
 
Talvez seja forçosa tal associação, mas nos é extremamente tentador adotar tal ambiente onírico enquanto sintoma da perda de referências das quais sofre o indivíduo contemporâneo que, sem substrato propício onde possa alavancar a sua identidade, passa a recorrer ao consumo enquanto sustentáculo de sua subjetividade.

Essa perda de referentes, se bem conseqüência do próprio caráter reflexivo da modernidade como defende Marshall Berman nos últimos capítulos de Tudo que é sólido desmancha no ar, é conseqüência de um rearranjo desse espaço que fora estruturado pela Modernidade e atinge as mais diversas áreas da vida social, como o campo econômico (onde se nota uma supremacia dos interesses de mercado em prol dos do Estado-Nação); político (notado pelo desmantelamento do Estado de bem-estar social em prol do “estado mínimo”, Neoliberal); além de outros fatores sociais e culturais.
 
Ao questionar-se sobre as mudanças estruturais que levaram à essa perda de referências sociais, a esse mal-estar, Bauman vai concluir que houve mudanças no modelo de organização social e, portanto, no eixo das prioridades humanas – no qual a lucratividade e a competitividade tornam-se mais importantes do que outros fatores – como exemplifica o excerto de O Mal-estar na pós-modernidade:
 
Num mundo em que os principais atores já não são estados-nações democraticamente controlados, mas conglomerados financeiros não eleitos, desobrigados e radicalmente desencaixados, a questão da maior lucratividade e competitividade invalida e torna ilegítimas todas as outras questões, antes que se tenha tempo e vontade de indaga-las... (p.61)

 
O consumo exacerbado:


Ao contrário daquele desejo moderno de se modificar a realidade na qual se está inserido, as ambições de Lily Allen se movem muito mais em torno dessa esfera contemporânea que vê no consumo uma finalidade em si mesmo.
 
Ao longo do videoclipe, por várias vezes assistimos a cenas nas quais o consumo é evidenciado – como nas imagens da cantora em uma sala repleta de embrulhos. No decorrer da música, vários são os trechos que acentuam a importância do consumo no mundo contemporâneo – como quando Lily Allen canta que “A vida é sobre estrelas de cinema e menos sobre mães/ é sobre carros rápidos e fazer graça uns dos outros./ Mas isso não me importa porque eu tenho o meu cartão de crédito/ e é isso que faz da minha vida algo tão fantástico”.
 
Em Vida para consumo, Bauman faz uma diferenciação entre consumo e consumismo muito pertinente ao estudo do nosso caso. Para ele, o consumo é uma necessidade humana, presente em todas as épocas; ao contrário do consumismo, essa disfunção do consumo – que muda a matriz da organização social (que passa de produtores para consumidores); fomenta uma cultura agorista e cria uma lógica do descartável.
 
Para Bauman, a expansão da esfera do consumo se deu de tal modo que ele se tornou a principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a produção sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando, ao mesmo tempo, um papel importante nos processos de auto-identificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais.
 
Tal assertiva encontra eco na música “The fear”, quando, por exemplo, quando cantora fala que seus sonhos/projetos de consumo continuam os mesmos a despeito dos efeitos colaterais que o consumo pode gerar em outras partes da sociedade, como explicita a letra “Eu quero ser rica e quero muito dinheiro/ Eu não ligo pra inteligência, eu não ligo pra diversão./ Eu quero muitas roupas e muito mais diamantes/ Eu ouço dizerem que pessoas morrem ao tentar encontra-los”.


Conclusão

 
Com a elaboração desse trabalho procuramos exibir a própria lógica ambígua e despreocupada com um posicionamento inflexível da indústria cultural – a qual usa como estratégia de venda, o próprio escancaramento do lado alienante do consumismo. Nessa linha, encontramos também, outros aspectos do momento pós-moderno e suas relações com o produto audiovisual analisado na própria concepção da linguagem visual, das qualidades rítmica e da letra que tornam o videoclipe “The Fear” um objeto de estudo sociológico tão atrativo para uma leitura de alguns conceitos que tentam explicar o contemporâneo.