Trabalho Final Fernanda Pôrto

O personagem

Michael Jackson é o personagem principal da maior indústria do espetáculo ocidental. Sua vida artística foi alvo da mídia enquanto durou sua carreira, mas sua intimidade promoveu um interesse sem igual por parte dos meios de comunicação e dos fãs. O sucesso estrondoso, a participação na criação de todo um modelo cultural a ser criado em fins da década de 1970 e principalmente durante a de 1980, os problemas familiares, sua sexualidade, as mudanças drásticas na aparência, os hábitos de reclusão, escândalos sexuais e dezenas de outros fatores suscitados sobre sua personalidade criaram uma figura quase mitológica e que pareceu se convencer de todos os atributos que lhe eram dirigidos.

O artista multifacetado foi sucesso quando explorou suas inúmeras habilidades nos palcos de uma cultura ávida por novidades. Um rapaz jovem, cantor, dançarino, negro em meio a uma sociedade de maioria branca e caçula de um grupo musical familiar nunca mais tateou o anonimato. Mas Michael Jackson só se tornou o personagem construído a partir do momento em que sua vida pessoal permeada de situações que remetem a um sofrimento pungente foi matéria jornalística pela primeira vez. Todas as suposições levantadas a seu respeito e que nunca foram exatamente confirmadas auxiliaram no processo de constituição do personagem astro que não sabe lidar com o sucesso, confuso, imaturo, inseguro, frágil e de vida pessoal conturbada. E quanto mais sólido era o personagem, mais rica a história.

Michael é o maior exemplo do efeito provocado pela cultura do espetáculo. Um sujeito moldado pelo o que na verdade só aparenta ser, espetacularizado em sua essência, confuso quanto a sua identidade, personagem de si próprio e enaltecido ao ponto de o fato de apenas sê-lo convergir uma atenção midiática sem igual. Terá sido ele vítima, agente, culpado, virtualidade ou realidade de todo o espetáculo armado à sua volta? Nunca se saberá, ao certo. Mas o rastro deixado por seus atos, assim como tudo o que pôde ser absorvido durante anos de investigação midiática, já rendem constatações acerca do sujeito sociológico incomparável que a sua figura representa para a sociedade do espetáculo.


As relações com as teorias de Zygmunt Bauman

 
O texto “Identidade” do autor traz considerações importantes a serem relacionadas com a figura do “Rei do Pop”.

Bauman coloca, de início, que estar em busca de uma identidade é estar em busca do impossível. E é exatamente o que se pode concluir das reflexões sobre a identidade de Michael Jackson. O que mais chama atenção em sua figura é a descaracterização paulatina pela qual seu corpo foi passando. Inúmeras cirurgias plásticas, a impressionante mudança na cor da pele e todos os ornamentos que o constituíam perante a mídia, como maquiagem, perucas e disfarces, denunciam o grave problema de reconhecimento identitário vivenciado pelo artista. Michael aponta a partir do que foi demonstrado, que seus sentimentos de pertencimento e de identidade, pelo menos em relação à aparência e ao que seu próprio corpo pode dizer sobre si, ultrapassaram os limites da semelhança de parentesco. Talvez por conta de um possível problema familiar tão explorado pela mídia, em que seu pai assumiu a figura do vilão para o frágil e jovem cantor, que aparentemente sofreu de violência emocional e física durante a infância. Ele passou, então, toda a fase adulta procurando se reconstruir baseado em um padrão de beleza próprio do mundo espetacularizado e pouco acostumado a ter um negro como ídolo. As diferenças e inovações trazidas por Michael ao universo que ele começava a pertencer eram, simultaneamente, uma forma de afastá-lo do que era padrão e não deixava espaço para um sentimento de que finalmente ele pertencia a uma comunidade. As decisões tomadas por ele em busca de sua identidade o afastaram de quem ele realmente era e, ao mesmo tempo, de quem ou do quê ele quis parecer, o que o caracterizou como um eterno “deslocado”.

O caso Michael Jackson pode ser enquadrado de acordo com a citação de Bauman, em “Identidade”:

(...) de fato, a “identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais_ mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta.

(...) perguntar “quem você é” só faz sentido se você acredita que possa ser outra coisa além de você mesmo; só se você tem uma escolha, e só se o que você escolhe depende de você; ou seja, só se você tem de fazer alguma coisa para que a escolha seja “real” e se sustente.

O personagem artista e a pessoa por detrás se confundiram a ponto de não se saber qual era mais forte e qual predominava sobre o corpo. Nunca foi esclarecido o padrão de normalidade vivido por Michael quando ele não estava sendo o profissional. A era Michael Jackson inaugurou todo um fluxo de artistas consumidos pela indústria do espetáculo e que convivem com um limite tênue entre sua essência e a personalidade construída. De qualquer forma, foi fundamental para as mudanças radicais do “Rei do Pop” a potência financeira própria do espetáculo e principalmente, dos recursos oferecidos pelo país que mais incorporou esse tipo de cultura na essência nacional. Ele claramente buscou por uma identidade que lhe oferecesse segurança, no caso, a segurança de pertencer a um padrão estético e pouco similar com o que mais lhe assustou durante a infância. O magnífico rancho Neverland aponta para um ideal de segurança atrelado a uma realidade à parte. Por outro lado, o fato de obter recursos que permitem buscar o que se quer ser e se desvencilhar do que mais causa repulsa em meio a uma infinidade de escolhas denota o próprio “herói popular”, o invejado desimpedido dono de suas possibilidades e com recursos para tanto.

Michael Jackson vive de ser consumido e consome para se construir, para acumular e para, em meio a uma sociedade movida por interesses financeiros, se fazer respeitado. A partir do momento em que se coloca como um sujeito economicamente rico, que acumula e com um nome conhecido, a sua essência pode flutuar de acordo com o mercado.

O Michael vivo também era um freak show à parte, uma vez que seu nome só estava na imprensa quando ligado a escândalos de toda a ordem, independentemente de seu trabalho artístico. A assombrosa figura social espetacularizada ultrapassou os limites da música e da dança e se tornou um personagem com uma intimidade curiosa, cotidiano único, desejos, hábitos e comportamentos indecifráveis. Mas só o Michael morto abriu espaço na imprensa para o indivíduo com problemas humanos, amigos, filhos para serem criados, família em sofrimento e discursos sobre lembranças de uma pessoa que viveu e que compartilhou situações comuns às pessoas comuns.
 
As teorias de Bauman acerca da identidade ajudam a explicar os significados da presença e da importância de um sujeito como Michael Jackson para a cultura do consumo e do espetáculo. A figura deste artista e tudo o que ele representa para o “pop” são claros exemplos da volatilidade da personalidade e do sentimento de pertencimento, assim como de uma indústria que vive do consumo de produtos humanos.

O artista e a pessoa bizarra de Michael eram ambivalentes em vida, assim como é depois de sua morte a figura de um indivíduo socialmente influente e a figura de um sujeito apodrecido pela constante construção/depreciação de si.


 
Bibliografia

 
BAUMAN, Zygmunt. “Identidade”, in: Identidade, Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

BAUMAN, Zygmunt. “Cultura Consumista”, in: Vida para Consumo, As Transformações das Pessoas em Mercadoria. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

BAUMAN, Zygmunt. “Turistas e Vagabundos”, in: Globalização: As Conseqüências Humanas”. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

BAUMAN, Zygmunt. “Uma introdução ou bem-vindos à esquiva comunidade”, in: Comunidade, A Busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.