Trabalho Final Giovani Barros e Mariana Ramos

Mulheres-sanduíche - O consumo mediado


Quando a gente pensou em um projeto para Sociologia da Comunicação II, logo nos veio a mente a imagem das mulheres-sanduíche. Homens-sanduíche (ou homem-placa, assim no masculino mesmo) é o termo que a gente costuma ouvir quando para se referir àquelas pessoas que ficam com placas em seu corpo, paradas na calçada, fazendo propaganda. No começo, só se encontrava (ou se percebia) anúncios de “Vendo/Compro Ouro” e similares. Mas atualmente, a gama de empresas que utilizam dessa estratégia se diversificou (é importante ressaltar que estas empresas geralmente atuam no setor de varejo). Agora existe placa pra tudo! A maioria deles só anuncia com as próprias placas mesmo, é raro ouvir um desses gritando e/ou anunciando o produto. Dessa forma, decidimos focar nosso trabalho nas mulheres que desempenham esse tipo de atividade. Estávamos interessados em realmente ver (e não somente olhar) essas mulheres, encontrar o que cada uma delas tinha de diferente: iríamos perguntar sobre moda, televisão, trabalho e outros assuntos que achávamos plausíveis para o entendimento de suas identidades.

É interessante notar, a partir disso, que essas mulheres estão absorvidas pela lógica do espetáculo, elas são pura imagem. Seus corpos, por estarem escondidos atrás dos anúncios, estão alienados, são mercadoria. Essas mulheres não têm direito de escolha: condicionadas a subempregos, são obrigadas a abdicar de suas personalidades (personalidade esta que está inscrita em suas roupas, seus gestos, seus olhares) para que essas não eclipsem os produtos, fim da função que estão desempenhando. Aqui funciona uma lógica da vedete ao contrário, pois na funcionalização destes corpos também não há um vivido, há só aparência. A mercadoria nega (ou pelos menos esconde) a existência à esse indivíduo.

A identidade é uma forma de distinção entre o eu e o outro, uma marca de alteridade. Na acepção de Castells, podemos considerar que a categoria mulher-sanduíche é um papel. “Os papéis são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade” (CASTELLS, p.22). Nas conversas que obtivemos com essas mulheres, ficou claro pra gente que elas não partilham significado com o que estão vendendo (pelo menos nos casos onde elas consentiram em nos prestar depoimentos). Nesse sentido, há um processo esquizofrênico na negociação entre o papel que elas representam naquele determinado meio social e os processos mais essencialistas da construção das suas identidades. Elas não encontram na atividade que elas desempenham uma identificação simbólica com o que projetam pro outro como identidade. O fato dessas mercadorias não fazerem parte do universo de consumo de tais mulheres reforça ainda mais essa separação radical. É até possível inferir que não há influência dessa categoria (enquanto papel) na construção dos seus processos de individuação, pois mulher-sanduíche é um papel que nega sua personalidade.

Tal fenômeno coloca-se de maneira muito evidente pois, com o ganho de reflexividade do mundo moderno, é possível entender a identidade como um processo, uma construção. Quando elas nos respondem que nunca usaram os serviços que vendem, há uma consciência a posteriori desses processos de fragmentação da identidade, que só se operacionaliza quando elas narram sua trajetória para si mesmas (através da entrevista).

Aqui a atuação da identidade legitimadora assume-se nos mais variados graus. Castells coloca que “a identidade legitimadora dá origem a uma sociedade civil, ou seja, um conjunto de organizações e instituições, bem como uma série de atores sociais estruturados e organizados, que embora às vezes de modo conflitante, reproduzem a identidade que racionaliza as fontes de dominação estrutural” (CASTELLS, p.24). Nos casos da mulheres que entrevistamos, haviam aquelas que disseram que não podiam dar entrevista pois seu patrões não permitiam que elas “conversassem no serviço”. Isso é sintoma de uma forma de reprodução do discurso da identidade legitimadora, que oprime qualquer possibilidade de uma identidade de projeto. Aqui não é possível a transformação social, inerente ao conceito de identidade de projeto apresentado por Castells. Essas mulheres são apenas representações do discurso de seus patrões, ou seja, de padrões de dominação do capital.

Outro ponto interessante a se observar é como as mulheres-sanduíche servem a uma “gastronomia do olhar”, como Balzac costuma descrever a atitude voyeurística. Sennet demonstra que o voyerismo, na sociedade moderna, é uma forma de participação na vida pública: “ (...) a pessoa está aberta para tudo e nada rejeita a priori de sua esfera de ação, contanto que não tenha de se tornar um participante ou envolver-se numa cena” (SENNET, p.43). Daí se estabelece um jogo voyeurístico entre o habitante da cidade moderna e a categoria que estamos tratando. Os passantes fingem que não vêem aquele objeto parado nas esquinas (ou, na verdade, fingem que só vêem as placas), e essas mulheres fingem que não estão sendo observadas, que não são alvo do olhar alheio. Esse “transe falsificado” (ou atitude blasé, numa tradição mais simmeliana) só é abalado quando do contato dos corpos, das individualidades entre comprador (ou interessado) e produto. A mulher sanduíche, nessa lógica, é um forma de mediação entre mercadoria e consumidor.

Habitamos um mundo em constante movimento, com produtos e novas tecnologias sendo desenvolvidos e lançados no mercado diariamente, onde a própria lógica de espaço e tempo foi/está sendo superada através de meios de transporte e comunicação que tornam as distâncias insignificantes. Esse progresso e a possibilidade de usufruí-lo é limitado, entretanto, a uma pequena parcela da população, uma parcela de privilegiados, denominados por Zygmut Bauman em seu livro Globalização: As conseqüências humanas como uma categoria: os turistas.

Os turistas são indivíduos livres para se mover ao seu bel prazer, acompanhando esse mundo tão volátil, que lhes é tão apelativo. A maior parcela da população, entretanto, não se encaixa neste padrão de vida. Estas pessoas, indivíduos que são obrigados a permanecer, são denominados por Bauman de vagabundos. A essa categoria pertecencem as pessoas presas a subempregos – afazeres rejeitados pela classe privilegiada, mas que precisam ser realizados – e a certas localidades, que tem seu movimento, ou ausência deste, determinado pela lógica capitalista pós-moderna: “Alguns podem mover-se para fora da localidade – qualquer localidade – quando quiserem. Outros observam, impotentes, a única localidade em que habitam movendo-se sob os seus pés” (BAUMAN, 1999, p.25).

As mulheres as quais abordamos estão inseridas no grupo dos vagabundos, mas sua situação é duplamente tensa, pois além de relegadas e presas a empregos os quais não lhes dá condições monetárias de se movimentar como turistas, o seu trabalho as coloca em situação de maior imobilidade e passividade, devem passar cerca de 10 horas diárias paradas ostentando cartazes de propaganda em calçadas públicas. Estas mulheres, que recebem a alcunha popular de mulheres-sanduíche, servem aos seus empregadores de outdoors humanos para seus produtos.

Estáticas em meio a um centro comercial elas observam diretamente o movimento daqueles que fazem compras, realizam seus afazeres, ou simplesmente passam, mas são impedidas de seguir o fluxo. Vivem sobre a ameaça de um superior que as vigia - um tipo de panóptico fora das fábricas, perceba-se aqui o caráter paradoxal de sua condição, estão presas mesmo quando em lugares abertos os quais para a maioria de nós é sinal de liberdade - nunca vêem exatamente o que as observa ou de onde, mas sentem que estão sendo observadas e isso é suficiente para mantê-las engessadas na sua imobilidade social. Esse medo de estar sob constante vigilância às impede, até mesmo, de se comunicar com outras pessoas que não sejam clientes em potencial.

Essas mulheres, ou ao menos aquelas com as quais conseguimos falar, têm inclusive consciência de que estão fazendo propagandas de produtos que não as atinge, produtos os quais não tem condição de consumir com o que lhes é pago. Não existe comunicação entre elas e o produto e muito menos com seu empregador. Suas escolhas pautam-se, em sua maioria, na necessidade de sobrevivência. É possível entender o papel dessas mulheres numa lógica em que as mesmas orientam o consumo, mas não tem consciência desse “poder”.

Numa sociedade onde ocorre o triunfo da representação, essas mulheres são uma mercadoria-signo. As placas nos seus corpos funcionalizam a mercadoria como um comunicador, e não como uma utilidade. Como atesta Featherstone “o consumo, portanto, não deve ser compreendido apenas como consumo de valores de uso, de utilidades materiais, mas primordialmente como consumo de signos”. Essas mulheres, ali onde desempenham sua atividade, não são corpos, são signos cujo referente não é a mulher-sujeito que se encontra por debaixo daquelas placas. É um não-lugar, uma representação que não necessariamente corresponde ao que se percebe na realidade dada ali naquela esquina, no centro da cidade de Niterói.