Trabalho Final Juliana Cruz


Norbert Elias eSimmel em Pequena Miss Sunshine

Por Juliana Milheiro Cruz


Alguns conceitos presentes nos estudos de Norbert Elias e George Simmel podem ser reparados quando analisamos as relações sociais que se formam em Pequena Miss Sunshine. Os estudos dos dois sociólogos se aproximam quanto à percepção do jogo estabelecido entre as regras sociais e os indivíduos na modernidade. Para que haja uma convivência pacífica nessa nova sociedade é necessário uniformizar certas regras, como horários e regras de trânsito, entre muitas outras, e submeter todos os indivíduos a elas. Porém, a forma de submissão dos indivíduos a essas regras, que se complexifica assim como a sociedade, vem muito mais a partir da introjeção das regras pelos indivíduos do que pela ameaça pura de repressão pela força. Isso acontece dentro de uma lógica de causas e efeitos de seus atos, que se contrários às regras causam transtornos à vida social estabelecida e de alguma forma serão punidos, agora não só fisicamente, mas muito mais psicologicamente. Se um aluno desrespeita regras instituídas pela escola em que estuda causando transtorno aos outros alunos, não só será repreendido pela direção da escola, mas também pelos alunos a quem causou transtorno tendo sua aceitação diminuída naquele círculo social.

Ao que Simmel aponta quando diz que “pontualidade, calculabilidade, exatidão, são introduzidas à força na vida pela complexidade e extensão da existência metropolitana” (SIMMEL, G. 1950, p. 15), Norbert Elias denomina autocontrole. Para os dois, essa introjeção de valores objetivos nos indivíduos é tão grande numa sociedade moderna que os valores subjetivos, como emoções e interpretações pessoais da realidade, são constantemente abafados.

“O controle e o autocontrole ao qual o indivíduo agora está cada vez mais acostumado procura reduzir os contrastes e mudanças súbitas de conduta e a carga afetiva de toda auto-expressão”.(ELIAS, N. 1993, p.202).

“Oferece-se uma tão grande inteireza de espírito cristalizado e despersonalizado que a personalidade, por assim dizer, não pode se manter sobre seu impacto”.(SIMMEL, G. 1950, p. 24).
 
Esse controle é transmitido de indivíduo a indivíduo desde a infância, tendo os pais uma forte função de retransmissores dessas condutas, direta – a partir da educação - ou indiretamente – a partir de seus próprios atos quotidianos que servem de modelo para seus filhos.

Simmel ressalta que, por outro lado, o indivíduo é impelido a se destacar dentro de sua função social dentro da idéia da divisão de trabalho, além de sentir uma necessidade interna de o fazer para auto-afirmar sua individualidade dentro das formas de vida generalizadas e impostas pela mesma sociedade. Porém, como existe um desequilíbrio entre a objetividade e a subjetividade, em que a primeira se sobrepõe à segunda, a maioria dos indivíduos acaba tentando destacar sua individualidade através da exacerbação de elementos objetivos em seus modos de vida, se destacando a partir dos próprios modelos estabelecidos e não da projeção de sua real individualidade para o mundo objetivo.

Simmel apresenta ainda alguns outros conceitos importantes na análise do filme. Um deles é a atitude blasé. Segundo ele, os estímulos objetivos ao indivíduo são tão fortes em uma metrópole que “os nervos encontram na recusa a reagir a seus estímulos a última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e à forma da vida metropolitana”.(SIMMEL, G. 1950, p. 17). Dessa forma algumas pessoas simplesmente ignoram fatores da sociedade que despertariam nelas emoções subjetivas, e passam a aceitá-los como natural pois seus nervos reativos chegam ao colapso pelo constante bombardeamento objetivo desses fatores.

Outro processo é a formação de identidades múltiplas, já que a atitude blasé aplicada na relação entre indivíduos se mostra na forma de uma reserva entre eles, ou seja, os contatos interpessoais são mais breves e não muito profundos. Isso possibilita que uma mesma pessoa aja de forma diferente diante de grupos sociais ou pessoas diferentes.
 
“A tentação a aparecer oportunamente, a surgir concentrado e notavelmente característico fica muito mais próximo de um indivíduo nos breves contatos metropolitanos do que em uma atmosfera em que a associação freqüente e prolongada assegura à personalidade uma imagem não ambígua de si mesma aos olhos dos outros”.(SIMMEL, G. 1950, pp. 22,23).
 
Aplicando essas noções ao filme percebemos que Richard, o pai de Olive, é o grande retransmissor dos mecanismos de controle e autocontrole de uma modelo de sociedade dos Estados Unidos dentro da família. A dicotomia de Perdedores e Vencedores, muito forte nesse modelo norte-americano de vida, é o guia principal de sua vida e que ele tenta impor a todo o momento aos outros membros da família. Porém, por não conseguir assumir um papel de destaque entre os escritores de livros de auto-ajuda, dentro da divisão de trabalho, ele se torna um perdedor. Antes de receber essa notícia costuma exaltar o reconhecimento do Editor pelo seu livro como forma de criar sua posição de destaque, que não é construída a partir da externalização de sua subjetividade, mas sim da exaltação do modelo objetivo vigente. Inconscientemente a família revela as marcas do controle internalizado. No momento que a Kombi pára tanto Olive Quanto seu irmão, Dwayne, treinam para alcançar seus objetivos, e serem vencedores. Dwayne pede à mãe que não deixe Olive se apresentar porque todos vão rir dela, ou seja ela será uma perdedora.

Outra demonstração de imposição de regras comuns a indivíduos para o bom funcionamento da sociedade é a data e o horário estabelecidos pelo concurso. Ele seria impossível se cada um comparecesse em dias e horários diferentes e o desrespeito dessas regras implicam, não em uma repressão física, mas numa repressão social, no banimento do concurso, como quase aconteceu com Olive. Conseqüentemente isso gera o mecanismo de autocontrole na família. Quando vão dormir no Hotel Richard deixa bem claro que “Amanhã todos de pé as 7 h porque temos que estar 7h40 na estrada”.Porém o controle gerado pelo concurso faz com que os indivíduos envolvidos deixem de lado outras regras sociais como as regras de trânsito e o funeral do Avô, mas não sem a problematização dessas transgressões. A própria Olive horrorizada lembra ao pai que ele não pode fazer determinadas manobras dentro das leis de trânsito. O que nos mostra também que as regras são internalizadas desde a infância pelo modelo dos adultos ou por outros mecanismos, como propagandas e educação institucional, já que Olive é uma criança e não dirige. Outro fator que demonstra a retransmissão inconsciente do autocontrole dos adultos às crianças é o episódio em que Olive diz não queres ser uma perdedora pois o pai odeia perdedores.

Podemos perceber no filme também as múltiplas personalidades que as pessoas representam de acordo com o papel social que devem assumir no meio e no momento em que se encontram. A mãe fuma escondida do pai. Quando estão falando ao telefone ele pergunta se ela está fumando e ela nega apesar de estar, porque a comunicação pelo telefone e não ao vivo permite isso. A assistente de palco do concurso da Pequena Miss Sunshine, apesar de achar a situação de Olive e sua família engraçada, finge estar séria quando está sendo vista por sua chefe e essa dualidade é, inclusive, utilizada como elemento de comedia no filme. Isso fica mais claro ainda nos personagens do médico e da assistente funerária do hospital, que atuam ou tentam atuar, dentro de uma conduta que rege as relações ali estabelecidas na frente dos clientes e de uma maneira completamente diferente quando supostamente eles não estão vendo. Alias, a altitude de tratarem o fato como corriqueiro a despeito dos clientes é um claro exemplo de altitude blasé. Como eles lidam com a morte todos os dias e esse é uma trabalho que fornece a eles seus meios de sobrevivência, se recusam a reagir subjetivamente à morte como forma de se conformar e sobreviver à realidade em que vivem todos os dias.

Se por um lado Richard é a referência de retransmissão do controle e autocontrole de acordo com a sociedade norte-americana, seu pai, Edwin está a todo o momento quebrando esses padrões e levando a tona suas paixões. Porém, esses atos têm conseqüências sociais negativas. No filme, primeiramente Edwin é expulso do asilo, depois more de overdose e ainda deixa suas marcas quando é mostrado o resultado dos seus ensaios com Olive. Essas conseqüências não afetam somente a ele, o que faz com que os outros indivíduos reprimam suas altitudes. “O principal perigo que uma pessoa representa para outra nessa agitação toda é o de perder o autocontrole. (…) Se a tensão desse autocontrole constante torna-se grande demais para ele, isso é suficiente para colocar os demais em perigo mortal”.(ELIAS, N.1993, P.197).

Outro exemplo de descontrole é o de Frank, tio de Olive que tenta se matar e por não ter mais o autocontrole precisa ser controlado pelos outros, pelo medico, por sua irmã, e sobrinha, sendo mantido distante de medicamentos, nunca deixado sozinho para que alguém possa sempre vigiá-lo e controlá-lo. A grande causa deste descontrole é a perda de sua posição de destaque na sociedade, já que ele assume que não se matou ao saber que o aluno por que estava apaixonado se apaixonara por outro e nem quando foi demitido pela universidade, mas quando soube que aquele outro ganhou o prêmio de estudos de Proust e ganhou lugar de destaque que antes era ocupado por ele. Lugar inclusive que não se conforma em perder quando repete ao empurrar a Kombi que é o mais respeitado estudioso de Proust dos EUA. Outra forma de tentar manter seu destaque social é quando encontra com o ex-aluno por quem era apaixonado e diz que pediu demissão e não foi demitido.

Olive, a personagem principal do filme, levanta mais claramente o processo de formação dessa distinção individual na sociedade a partir da exacerbação do objetivo em prejuízo do subjetivo. E o filme consegue mostrar isso com sucesso contribuindo com o oposto do que seria o usual na sociedade. Olive não consegue se autocontrolar quanto às guloseimas, em parte por estímulo da própria família, e por iso não se enquadra nos padrões de beleza estabelecidos pelo concurso e pela sociedade. Dessa forma, ela não consegue se destacar positivamente no concurso. Quem se destaca positivamente e quem tem as características objetivas impostas pelo grupo exacerbadas e Olive tem características opostas, por isso ameaça o grupo e é excluída e depois punida por não ter aceitado a exclusão.
 
No fim do filme toda a família aceita colocar a subjetividade em primeiro lugar, fugindo das regras sociais e do exercício do autocontrole e são punidos por isso. Mas criam uma integração interna que fez com que não sejam tão fortemente atingidos por essa punição. Assim, o filme faz uma ode ao desrespeito de certas leis da sociedade Americana e ao incentivo da imposição do subjetivo sobre o objetivo, venerando os desejos acima do controle social.
 
Bibliografia:

ELIAS, N. “Do controle social ao autocontrole”. IN: O processo civilizador, vol. 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993, pp. 193-207.

SIMMEL, G. “A metrópole e a vida mental”. IN: VELHO, Otávio (org.). O Fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Guanabara, 1978, pp. 11-25.


Filmografia:

Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, EUA, 2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris.